Um testemunho de Carmen Sílvia Musa Lício:
Eu tive um amigo que me era muito caro. Um rapaz inteligente que conheci desde que éramos pequenos ainda. Morávamos próximos e sempre visitava a sua família e ele a minha. As nossas famílias eram muito amigas. Brincávamos pelas ruas do bairro de Pinheiros, em grupos, e também a sós. Eram momentos de muita alegria.
Ele era realmente muito inteligente, além de esforçado. Falava sobre as plantas, quando via alguma em algum vaso ou pelas ruas e parques. Dizia os nomes científicos, como deveriam ser cuidadas. Ao ver um aquário, falava sobre cada um dos peixes, como deveriam ser cuidados, como deixar um aquário autossuficiente, de modo a não precisar ser esvaziado e limpo… Amava Astronomia e, ao ver as estrelas, discursava sobre cada uma delas, seus nomes e a qual constelação pertenciam. Tudo isto e muito mais, mas sempre com humildade, de uma forma tranquila, com bom humor, sem querer ‘aparecer’. Além de tudo isto, ele tocava piano muito bem!
Quando chegou ao final da adolescência, resolveu cursar Medicina. Sendo estudioso, entrou em duas faculdades, escolhendo ir para Campinas, onde começou a fazer o seu curso. Depois desta fase eu quase não tinha notícias dele, a não ser pelos seus familiares, além de serem notícias esporádicas.
Depois de um tempo, pouco mais de um ano, desistiu, retornando a São Paulo. Passou um tempo em depressão e depois começou a trabalhar como ‘office-boy’ em Pinheiros e arredores. Pouco o encontrei ou conversei com ele nesta época, inclusive por eu ter me mudado de lá com a minha família. Uma vez o encontrei no Largo de Pinheiros e quando perguntei por que resolveu ser ‘office-boy’, respondeu laconicamente que era bom, pois andava durante todo o dia e assim, ao voltar para casa, dormia logo, de tão cansado, e não ficava pensando, à noite, nos problemas da vida.
E o tempo passou…
Depois de alguns anos soube que ele resolveu novamente tentar fazer Medicina, e mais uma vez entrou em uma excelente faculdade pública em São Paulo, com excelente classificação. E assim acompanhei, de longe, o seu esforço para cursar a faculdade, sendo sempre muito bem avaliado.
Um dia, quando eu estava terminando a Faculdade de Enfermagem na USP, ele cursando o quarto ano de Medicina, meu pai recebeu um telefonema onde disseram que ele estava internado na UTI do Hospital das Clínicas, em estado grave. Fiquei consternada, sem saber o que pensar a respeito, só querendo vê-lo e saber como estava. Fui correndo para lá, ainda com o uniforme de estudante, o que me facilitou a entrada. Vi que estava mesmo muito mal, em estado de coma, com traqueostomia. Ao conversar com os médicos, eles me disseram que o seu estado era grave e que dificilmente sobreviveria.
Soube então da sua história. Seus pais resolveram viajar para o litoral e ele disse não querer acompanhá-los para ficar em casa e estudar para uma prova. Seus pais saíram de carro e logo depois resolveram voltar, pois seu pai havia esquecido um documento. Assim que chegou à sua casa, chamou pelo filho, que não respondeu. Subiu as escadas que dava para o andar superior e logo viu a porta do banheiro, entreaberta, com barulho de água corrente. Entrou e viu o filho sentado na banheira de ‘ofurô’, com os pulsos cortados, com o sangue jorrando até o teto. Ficou desesperado, fez um torniquete no braço, chamou a ambulância, que o levou ao Hospital das Clínicas.
Ele era um rapaz magro, alto, mestiço de japonês com brasileira, muito bonito. Eu não conseguia entender o que poderia tê-lo levado a um ato tão extremo. Ficava imaginando a sua aflição por algo que estava tirando a sua paz e a tristeza profunda dos seus pais, irmãos e familiares…
Comecei a visitá-lo todos os dias, após o meu estágio no próprio HC, e depois, mais à noitinha, após o término das aulas teóricas, no prédio ao lado. E sempre que ia lá, pegava na sua mão e conversava com ele, mesmo ele estando em estado de coma profundo. Dizia que era o meu amigo preferido, que o amava como a um irmão, que a sua vida era muito importante para mim, para os seus parentes e amigos. Sempre, antes de entrar na UTI, lia algum versículo da Bíblia que falasse sobre o amor de Deus, sobre a sua imensa bondade, discorrendo depois sobre o texto. Sabia que algo muito sério deveria ter acontecido para que ele desistisse assim da vida e queria tocar o seu coração, pois sabia que só sairia dali vivo se ele mesmo quisesse e lutasse pela sua própria vida.
Uma vez um dos alunos de medicina, que cuidava dele, me contou que era seu colega de faculdade e relatou-me alguns fatos que aconteceram com ele, mas nada que justificasse toda esta tragédia. Eu percebia que havia uma razão muito séria por trás de tudo aquilo e orava para que Deus me desse a Sua sabedoria, para que eu pudesse chegar ao seu coração e tocá-lo de alguma forma. Pedia também para que Deus me desse tempo suficiente e a melhor forma de falar de Jesus para ele, que segurasse a sua vida até ele ouvir sobre a verdadeira mensagem do evangelho.
Depois de passados uns 15 dias, eu estava falando com ele, segurando a sua mão quando, de repente, eu disse: –“Olha, eu estou vindo aqui todos os dias. Tenho falado com você, sem ao menos saber se você me ouve ou se me entende. Não sei se estou falando com as paredes… Se você está me escutando, dê algum sinal, por favor! Pode ser um aperto de mão, um piscar de olhos, qualquer coisa…” E fiquei atenta.
De repente, senti um aperto de mão forte, o que me deixou muito surpresa e feliz, já que os médicos diziam, sempre, que eu estava falando com uma ‘planta’, pois ele nada poderia escutar, já que estava em um coma profundo. Diziam isto para que eu aceitasse a sua condição, e me conformasse.
Depois de saber que ele não só me escutava, mas também conseguia me entender, comecei a falar de uma forma mais clara e direta, pedindo a ele para que, se concordasse comigo, me apertasse a mão; se não, ficasse quieto. Quando não apertava a mão, pedia então para que, se não concordasse comigo, apertasse então a minha mão. E começamos assim a nossa ‘conversa’.
Uma vez, antes de ir para o HC, passei pelo Largo de Pinheiros, onde pegaria outro ônibus para lá e, sem querer, enquanto conversava com um rapaz, ainda no ponto de ônibus, quando contei deste meu amigo, ele começou a contar que ele havia sido seu colega lá em Campinas.
Eu fiquei chocada com esta ‘coincidência’. Contou-me um pouco das razões que levou este meu amigo a desistir de ficar lá e terminar o seu curso, já que era um excelente aluno. Disse que ele, sendo de uma família evangélica, resolveu morar em uma república onde havia vários rapazes. Um dos seus companheiros de quarto procurou-o no meio da noite, tentando manter uma relação sexual com ele, que ficou chocado, pois este rapaz era um dos líderes da igreja evangélica local. Não ficou claro para mim, nem para este rapaz, até que nível chegou este possível relacionamento. Só sei que foi por esta razão que ele abdicou do seu sonho de se formar em Medicina, voltando para São Paulo desesperançado, atormentado e deprimido, além de não mais confiar em Deus, na igreja, onde fora criado por tantos anos. Percebi que não se sentia digno do perdão de Deus por tal ato. Lembrei-me então de como estava descrente quando o encontrei no enterro da sua avó, pouco tempo depois da sua volta de Campinas.
Então consegui entender um pouco da provável razão para ele ficar tão desacorçoado, sem acreditar mais no ser humano, na igreja, na vida, em Deus! E continuei a visitá-lo todos os dias, sempre tentando falar com ele sobre o que eu sabia ser a única razão que poderia tocar o seu coração: a fé em Deus.
Falei então sobre o versículo onde está escrito que Deus não só perdoa nossos pecados, como deles se esquece; que não há pecado, por mais escarlate que seja, que Deus não possa tornar mais branco do que a neve. E outros versículos que mostram o Seu grande amor por nós. Falei sobre Deus nos amar a tal ponto que nos deu o único filho para que fôssemos perdoados, já que não somos, nem conseguimos, ser perfeitos. Falei do sacrifício de Jesus na cruz e, no final, perguntei se ele queria entregar a sua vida a Jesus, confessar os seus pecados e aceitá-lo como o seu único Salvador. Pedi a ele que se concordasse apertasse a minha mão; não apertou. Disse que se não concordasse, que deveria apertar a minha mão. Não apertou. Então perguntei se estava me ouvindo; apertou a minha mão. Perguntei se estava na dúvida; apertou a minha mão. Então perguntei se poderia orar por ele, apertou a minha mão. Orei por ele e disse para ele pensar até o dia seguinte.
No dia seguinte, quando li outro versículo, disse a ele que eu ‘não iria enfiar pela goela abaixo algo que ele não quisesse, só porque estava sem poder me responder’. Ele respondeu, do nosso jeito, que eu poderia continuar a falar. No final perguntei se queria, afinal, aceitar a Jesus como o seu Salvador, e ele apertou fortemente a minha mão. Orei com ele e me pareceu que até o seu semblante ficou mais calmo, mais sereno. Aquele ar de tristeza, de angústia, deu lugar a uma paz que parecia vir de dentro para fora. Depois de poucos dias começou a dar um pequeno sorriso, só de um lado da boca, quando eu brincava com ele. Comecei então a ter mais esperança e ia visitá-lo, mais animada.
Neste dia, quando fui conversar com os médicos eles me disseram que, mesmo que ele sobrevivesse, já havia perdido a visão, pois havia, além de tudo, tomado um veneno para plantas, que o havia tornado cego. Disseram ainda que também não andaria e talvez sobrevivesse com sérias limitações.
Sabendo que os seus pais e irmãos queriam muito visitá-lo, pedi a ele que os recebesse. Ele não queria, mas eu sabia ser importante para a sua mãe. Então, depois de uma certa insistência, ele aceitou.
Um dia, ao chegar lá, o encontrei chorando muito, convulsivamente. Chorava alto e o som do seu choro saia pela traqueostomia, fazendo um som horrível, gutural; o que me fez chorar também. Fui conversar com os médicos e perguntei o que havia acontecido e eles me disseram que ele ficou assim depois que a sua mãe o havia visitado, na noite anterior. Chorou durante toda a madrugada e durante toda a manhã. Conversei com ele e tentei acalmá-lo, dizendo que não sabia o que a sua mãe havia falado, mas fosse lá o que fosse, tentasse se lembrar de que uma mãe desesperada às vezes fala coisas que não deveria falar nunca, mas que ela sempre o amou. Orei com ele e ele se acalmou. Pedi então aos familiares para não o visitarem mais, até que ele melhorasse de vez…
Uma tarde, quando estava conversando com ele, um dos residentes me inquiriu, dizendo como eu podia dizer que conversava com um ‘quase morto’. Eu expliquei como havia sido o nosso processo e eles ficaram muito intrigados, além de curiosos. Falei para eles ficarem calados e acompanharem toda a minha conversa. E assim foi. Até que eu perguntei se ele havia dormido bem; ele não apertou a minha mão. Depois eu perguntei se havia dormido mal e ele apertou a minha mão. Daí resolvi perguntar o que havia acontecido. Pedi para que ele apertasse a minha mão quando chegasse na primeira letra da palavra que seria a causa da sua insônia. Falei todo o ‘abecedário’, e nada! O rapaz que era residente, já entusiasmado, falou bem alto que ele não havia entendido direito, que eu repetisse. Eu fiz sinal para ele ficar quieto e expliquei novamente como seria a nova fase do processo por nós descoberto. Foi quando eu disse ‘D’ e ele apertou a minha mão. Para agilizar eu já perguntei se estava sentindo alguma dor; ele respondeu que sim. Novo abecedário e na letra P, novo aperto de mão. Perguntei se era ‘dor no pé’ e ele respondeu que sim. Descobri os pés dele e pudemos observar enormes hematomas que foram feitos à noite, na tentativa de pegar uma nova veia.
Como ficou claro que ele percebeu que estava sendo observado durante a nossa conversa, pedi a ele que dali para a frente respondesse às perguntas dos médicos. Ficou ‘calado’, mas eu disse que eles queriam o seu melhor e assim ele estaria ajudando na sua própria recuperação. E assim ele concordou.
Nesta época ele apresentou uma infecção generalizada e eles entraram com antibióticos mais potentes. Depois de alguns dias, percebendo que os seus cabelos estavam muito sujos e oleosos, perguntei se ele me deixava lavá-los e ele aquiesceu. Pedi uma bacia e uma jarra com água morna, uma toalha de banho e uma auxiliar de enfermagem me auxiliou, já que ele não conseguia se movimentar. Não quis dar banho no leito nele por achar que possivelmente ficaria constrangido, sendo eu mulher e sua grande amiga.
Depois deste ‘banho’ resolvi dar uma volta pelas redondezas para esfriar a minha cabeça e voltar no final da tarde para visitá-lo novamente, no próximo horário de visita. Fui ao cinema, no Conjunto Nacional, próximo dali, e ‘assisti’ a um filme. Não me perguntem qual foi o filme, pois o filme que passava na minha cabeça era tudo o que havia acontecido nestes últimos 20 dias…
Só pensava em como Deus havia atendido às minhas orações e em tudo que já havia acontecido. Mas continuava a orar por ele, pedindo a Deus que se fosse para ter tantas sequelas, uma vida em cima de uma cama, sem qualquer qualidade de vida, que o levasse para junto de Si. Na volta visitei-o novamente e ele até deu um sorriso para mim. E saí dali mais tranquila, mesmo sem saber qual seria o final desta história.
Chegando em minha casa, conversei com os meus pais, e fui dormir, não sem antes orar mais uma vez por ele. Confesso que naquela hora pensava na possibilidade de ele sobreviver, sem maiores sequelas, e usufruir uma vida, produtiva e feliz. E adormeci…
Fui acordada lá pelas 5:30h do dia seguinte, com o pai dele me dizendo que ele sabia que eu ‘já esperava por esta notícia’. Disse que ele morreu à noite, dormindo, sem sofrimento algum. Eu agradeci a ele e disse que iria logo para lá. Confesso que à estas alturas eu não esperava este final, assim, tão rápido…
Ele se foi, mas ficaram as memórias, as boas e más lembranças, e, principalmente, ficou a certeza de que ele está junto a Deus, gozando da Sua presença e do Seu grande amor. Quando lá eu chegar, só quero dar um abraço bem apertado nele, que falará por si só…
Ficou a enorme gratidão a Deus por haver permitido que eu pudesse ter tempo para falar de Jesus e, principalmente, de ele O aceitar como o seu Salvador. E ficou o grande aprendizado que auxiliou durante toda a minha vida profissional, como enfermeira, bem como na minha vida pessoal, com os meus familiares…
Carmen Sílvia Musa Lício
Carmen Sílvia Musa Lício nasceu em 15/09/1952 na Cidade de São Paulo/SP.
Filha de pastor (Wilson Nóbrega Lício), sobrinha de pastores (Mário Lício e Miguel Rizzo Jr), prima de outro pastor (Paulo Lício Rizzo), cresceu na Igreja Presbiteriana de Pinheiros, onde o seu pai foi pastor por 20 anos.
Participou do Coral desde os 12 anos, onde dona Maria Salete era regente, fazendo a voz de contralto. Seus irmãos e mãe faziam as outras vozes, formando um quarteto familiar, o que muito auxiliou o seu pai em viagens para participar de Campanhas Evangelísticas, bem como da inauguração da Igreja Presbiteriana em Porto Alegre, RS.
Na sua adolescência foi, juntamente com toda a família, para a IP de Vila Pompeia, São Paulo, quando da transferência do seu pai para lá pastorear. Cantou no coral que se apresentou no Maracanã, quando houve a Cruzada Billy Graham, em 1974.
Converteu-se aos 17 anos, juntamente com a sua irmã, em um culto de despedida do missionário Haroldo Reimer, na Primeira Igreja Presbiteriana Independente de São Paulo. Isto aconteceu em 27 de Junho de 1970. Após pouco mais de 2 meses sua irmã Nilza Maria faleceu, aos 15 anos, em um acidente de carro, e isto mudou todo o rumo da sua vida. Resolveu então ser enfermeira para cuidar das pessoas, tanto física, quanto emocional e espiritualmente, levando o evangelho de Jesus por onde quer que fosse.
Sempre amou música e, apesar de não ter uma formação nesta área, sempre incentivada por esta regente, acabou sendo a única pré-adolescente a fazer parte do coral da igreja. Sua tia, Blanche Lício, esposa do rev. Mário Lício compôs vários hinos, assim como o seu primo Paulo Lício Rizzo.
Próximo ao seu falecimento Paulo compôs a letra para um hino, não tendo tempo para compor também a música. Após 60 anos da sua morte, mexendo em seus guardados, Carmen, que já compôs alguns corinhos (letra e música), ao ler a letra tão profunda, de um pastor ainda jovem, antevendo a sua morte iminente, acabou por compor a melodia para este hino até então inacabado.
Agora, já aposentada, dedica-se mais a escrever crônicas, poemas, alguns livros e a compor alguns corinhos, além de auxiliar, de alguma forma, a quem a procura solicitando algum aconselhamento espiritual para a sua vida.
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SER ENFERMEIRO
Ser enfermeiro é uma missão
Envolve a alma, o coração
É cuidar dos que necessitam
De um cuidado, de uma atenção
Ser enfermeiro por vocação
É um dom maior
É cuidar de todos
Sem exceção
Depois de tantos anos
De pura dedicação
Missão comprida
Missão cumprida
Sensação de paz
No coração
Dever cumprido
Com muitas lágrimas
Muitos sorrisos
Muito trabalho
Muita emoção
Enfermeiro não se aposenta
Só não mais se arrebenta
Faz o que pode ao seu redor
Continua sempre a tentar cuidar
Dar conselhos, tentar ajudar.
By Carmen, a Musa
Após 42 anos de formação
2017
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